Reassisti o filme Stuart Little (1999).
Na infância, era só um filme bobinho da Sessão da Tarde sobre um rato adotado por uma família rica. Um ratinho simpático, um gato ranzinza, situações absurdas, algumas piadas ruins. Fim.
Essa semana revi o filme e esses olhos cansados enxergaram mais que uma história infantil. Um rato adotado por humanos é um absurdo visual. Mas ninguém estranha. Ninguém pergunta. Ninguém explica.
A metáfora escorre por cada cena. Stuart não é apenas um rato. É o outro. É o que não cabe. É a criança rejeitada no orfanato, enquanto o casal branco de classe média escolhe o ser menor, mais frágil, o completamente estranho. É a metáfora da pessoa com deficiência. Da adoção atípica. Daquilo que está fora do comum. A pergunta que fica ecoando: por que o rato? Por que não uma criança “normal”?
No livro original, escrito por E.B. White, a coisa fica ainda mais esquisita. Stuart não é adotado. Ele é um rato nascido da barriga de uma mãe humana. É filho biológico. Tipo o Benjamin Button. Em uma categoria diferente, mas em mesma essência, é tipo o Gregor Samsa. É o corpo dizendo o que a sociedade não sabe nomear. A mãe o ama, mas é um amor cercado de porcelana. Tudo pode quebrar. Tudo é esquisito demais.
Kafka transformou um homem num inseto e ninguém perguntou como. White transforma um nascimento em acidente. A biologia falha. A metáfora aparece. E ninguém corrige.
Stuart vive sem desejar outro corpo. Ele aceita o que é. Dirige carros minúsculos, enfrenta gatos gigantes, se apaixona por uma passarinha. E por mais diferente que Stuart seja dos seres ao seu redor, ele participa da mesma natureza dos demais humanos em seu sofrimento. Porque Stuart ama, mas ama sem retorno. Ama sem reciprocidade. Ama porque encontrou alguém que talvez entenda, mas não entende. Margalo voa e Stuart continua andando.
O livro, diferente do filme bonitinho, é mais cru. O fim é seco. Nada de final feliz. Margalo vai embora. Stuart fica. A estrada é dele. O vazio também. Um rato sozinho numa estrada longa demais. Um rato-homem. Um homem-rato.
E aqui entra a pergunta incômoda: histórias infantis podem acabar assim? Tristes? Sem resolução? Sem catarse?
Podem.
Mas nem sempre devem.
Algumas crianças sabem lidar com isso. Outras desmoronam. A dor exige preparo. Mas a vida não espera que estejamos prontos. Talvez os livros também não devam esperar.
Minha filha chorou com La La Land. Chorou de soluçar. Mas depois disse: “é meu filme preferido”. Porque a dor, quando reconhecida, vira beleza. Mesmo que doa. Mesmo que não passe.
Stuart Little é uma história infantil feita para adultos distraídos. Ou uma história adulta disfarçada de animação para crianças. Tanto faz. É sobre abandono. Sobre inadequação. Sobre afeto sem retorno. Sobre ser diferente num mundo que sorri educado, mas nunca chama para a festa.
A gente cresce, reassiste e entende que Stuart sempre esteve sozinho. O que muda é que agora somos nós quem percebemos.
Citando o Dr. Manhattan, em Watchmen, de Alan Moore: “Somos todos marionetes. A diferença é que eu vejo as cordas”.
Texto que toca a alma!
(só não consigo gostar de La La Land hahaha)
Excelente observação, muito obrigado pelo texto.